Contribuições da tese
"Caminhos para viver o Mbya Reko: estudo
antropológico do contato interétnico e de políticas públicas de
etnodesenvolvimento a partir de pesquisa etnográfica junto a coletivos Guarani
no Rio Grande do Sul", de Mariana de Andrade Soares, para a compreensão
de desafios contemporâneos dos coletivos Guarani.
A tese apresentada por Mariana de Andrade Soares[1] é
fruto das experiências da autora, no papel de estudante, profissional e pesquisadora,
a partir de suas relações com os coletivos Guarani no Rio Grande do Sul. O objetivo
geral desse trabalho, segundo a mesma, é fazer uma reflexão antropológica sobre
os encontros e desencontros na relação desses coletivos com o Estado, suas
respectivas instituições e políticas públicas de etnodesenvolvimento.
No capítulo primeiro, a autora apresenta a sua
trajetória acadêmica e profissional junto aos guaranis do Rio Grande do Sul. O
contato com os Guaranis já se deu no início de sua graduação em História
(1995-98), apesar de naquela época o interesse da autora estivesse mais voltado
aos vestígios do passado do que às condições de vida daqueles indígenas. Em 1997, ela participou, como bolsista de
iniciação científica, no levantamento documental sobre o processo histórico da
TI Borboleta – Terra Indígena reivindicada pelas famílias “Kaingang da
Borboleta”. A partir dessa pesquisa a
autora foi nomeada para compor o Grupo Técnico responsável pela Perícia
Antropológica de Identificação e Delimitação dessa Terra Indígena. No ano 2000,
a autora participou do Diagnóstico Socioantropológico e Participativo da
Manifestação do Alcoolismo entre Populações Indígenas no Estado do Rio Grande do Sul, o que
possibilitou sua inserção etnográfica junto aos coletivos Mbya. Em 2002,
ingressou no cargo de antropólogo (a) da EMATER/RS-ASCAR (Associação
Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural -
Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural).
A autora afirma que o ofício “antropóloga da ação”,
envolvida diretamente com o tema desenvolvimento e coletivos indígenas no Rio
Grande do Sul, garantiu a ela um lugar privilegiado e a oportunidade de
estabelecer relações com diversos atores sociais (índios e não-índios), o que
forneceu subsídios fundamentais para a realização da pesquisa.
Ainda no capítulo primeiro, a autora descreve sua
tese utilizando como metáfora o caminho que envolve as trajetórias de
indivíduos e coletivos Guarani. A autora aponta que existe uma vasta literatura
que busca explicar o sentido do caminhar dos Guarani. Com a obra de Curt
Nimuendaju, os movimentos desses povos passam a ser explicado do ponto de vista
da sua religião, como um complexo profético-migratório, relacionado ao mito da
“busca da terra sem mal”. Entretanto, pesquisas, a partir dos anos 90, passaram
a indicar que os deslocamentos dos Guarani são mais uma busca no sentido
ecológico e econômico, do que no sentido religioso. A etnologia contemporânea
tem focado sua análise no ethos caminhante Guarani, na importância do seu
caminhar. Esse caminhar diz respeito, mais do que achar um lugar definitivo
ideal para a prática do seu modo tradicional, se busca sempre este modo melhor,
em espaços alternativos ao atual.
No que diz respeito a metodologia da pesquisa, a
autora desenvolve sua tese a partir de uma análise que leva em conta a macro
esfera (relações da sociedade ocidental contemporânea -global- e os coletivos
Guarani - local-), a meso esfera (relações sociais permeadas pelas ações do
Estado) e micro esfera (pesquisa etnográfica realizada na Tekoa Porã).
O centro do universo da pesquisa esteve nos
coletivos Guarani que vivem na Tekoa Porã, localizada no município do Salto do
Jacuí, na bacia hidrográfica do Alto Jacuí, Rio Grande do Sul. O rio Jacuí é
caracterizado por sua descida aos saltos. Essa característica possibilitou a
construção de cinco Usinas Hidrelétricas, sendo que algumas delas afetaram
diretamente o território tradicional Guarani. A ocupação tradicional dos Mbya
do Salto do Jacuí passou por processo de territorização (os Guarani permaneceram
no local e circularam pelo Estado desde o fim do século XIX até a década de 50),
desterritorialização (com a construção da Barragem Maia Filho nos anos 50) e
reterritorialização (com o reflorestamento de espécies exóticas numa área
destinada pela CEE - Companhia Estadual de Energia Elétrica - para a proteção
ambiental). Na época de sua delimitação a Aldeia do Salto do Jacuí (denominada
pelos Guarani de Tekoa Porã) era formada apenas por uma família extensa. Por
meio de decreto, em 1996 ela se torna uma TI.
A autora então traz a descrição de personagens que
fazem parte da história da Tekoa Porã. João de Oliveira (Juancito) é uma das
figuras centrais. Ele saiu Argentina por seu descontentamento com as políticas
indigenista de seu país e com as intervenções de projetos de desenvolvimento.
Ara Miri, cunhada de Juancito o acompanhou na trajetória da Argentina até o
Brasil. A partir de 1997 se deu o deslocamento de mais famílias Guarani
motivados pelo deslocamento de Karai Iapuá (Luiz Natalício).
A etnografia abrangeu o período de agosto de 2009 até
novembro de 2011, mas não de forma continua, sendo intercalada por outras
atividades da autora. Isto, segundo ela, permitiu a organização e reflexão
sobre os dados coletados no campo. Durante seu convívio com os Mbya, ela relata
que buscou aprender a língua guarani, mas não conseguiu desenvolver a linguagem
suficientemente para garantir um diálogo. Entretanto ela contou com a ajuda de
alguém entre os Guarani que se dispunha a fazer a interlocução.
O conceito de etnodesenvolvimento é problematizado
no texto da autora. Este conceito surgiu em contraposição crítica e alternativa
às teorias e ações desenvolvimentistas e etnocidas, que tomavam as sociedades
indígenas e as comunidades tradicionais como obstáculos à modernização e ao
progresso. O termo relaciona o desenvolvimento sustentável ao respeito às
identidades étnicas. O problema que se apresenta é qual termo utilizar para se
referir ao desenvolvimento Guarani, uma vez que essa noção sempre estará
associada ao modelo desenvolvimentista da sociedade ocidental contemporânea. O
processo de desenvolvimento atravessa as práticas culturais com o modelo
próprio que os coletivos guarani estabelecem com a natureza (e sobrenatureza)
até as discussões sobre qual visão de desenvolvimento se quer construir. Isso
passa pela própria ideia de um contra-desenvolvimento.
Mesmo que de forma diversa, lideranças Guarani
articulam aliados em prol dos direitos indígenas, entretanto, as terras já
ocupadas pelos coletivos Guarani são inadequadas para a existência da mata
verdadeira, que lhe permite o estabelecimento de relações com diversos seres
que compõem o cosmos, sendo necessária a busca para o melhor bem viver, sendo
uma das vias, a sua relação com o Estado. Entretanto existem entraves nessa
relação, com a presença de conflitos internos e externos aos coletivos.
O capítulo seis descreverá algumas relações de
conflito dentro da Tekoa Porã que envolve as divergências sobre a ideia de
desenvolvimento. A autora aponta que a com-vivência (estar junto) dentro de um
mesmo território, passa pela busca em si dessa reciprocidade e do consenso
interno. Essa questão se torna ainda mais evidente quando está em jogo a
construção de um projeto de comunidade e/ou que contemple a heterogeneidade
desse “coletivo”. As trajetórias revelam vivências do Mbya reko, ou a busca
pela sua realização, como forma do bem estar, daquilo que pode ser traduzido
como desenvolvimento Guarani.
A literatura etnológica apontou historicamente que
em termos da dispersão geográfica dos Mbya, cada família extensa ocuparia um
determinado lugar, sendo representada por uma figura masculina como liderança
política. Entretanto, estudos contemporâneos indicam que a existência de
coabitação de uma ou mais famílias extensas ampliadas numa mesma tekoa é
constantemente submetida a processos de estruturação e desestruturação, devido
ao dinamismo e a mobilidade dos grupos e/ou pessoas que a integram. Esse foi o
caso da Tekoa Porã. Com a morte de Juancito, foram sendo desveladas as redes
societárias que compunham a Tekoa na figura de Ara Miri reveguá kuéry (cunhada
do antigo líder Juancito) e Karai Iapuá reveguá kuéry.
O compartilhamento do ritual na Opy se dava entre os
Guarani da mesma rede societária (kuéry). A existência de duas casas de rezas
na mesma aldeia foi um dos motivos que ocasionou uma série de conflitos na
Tekoa Porã. Além disso, havia certo ressentimento e instabilidade na Tekoa Ara
Miri não considerava legítima a atuação de Karai Iapuá como líder – de fato, há
uma instabilidade constante na liderança política Guarani pelo caráter fluído e
móvel dessa posição, pois todo chefe de família é um líder em potencial. Ara
Miri não o aceitava como líder por dois motivos principais: primeiro, pela
reivindicação na anterioridade de ocupação da área e sucessão do cacicado pelo
parentesco com Juancito sendo, por diversas situações, expressa por Jorge
Gimenez (neto de Ara Miri, que não assumiu o cargo por problemas com o
alcoolismo) e, segundo, pela própria postura de Karai Iapuá na distribuição de
recursos. Isso de fato é um problema para os coletivos indígenas, uma vez que,
um líder politico, além do dom da oratória, constrói seu prestigio social, a
partir da sua capacidade de acumulação e distribuição.
A autora registra outras situações que trouxeram
controvérsias para a Tekoa Porã, como o corte de eucaliptos e o destino do
dinheiro da venda dos mesmos e a exploração da área para o turismo. “Se por um
lado, para alguns Guarani o corte de eucaliptos era necessário para a obtenção
de dinheiro e/ou melhoria nas suas condições de moradia, para outros, por outro
lado, era uma forma de plantar espécies vegetais importantes dentro da sua
cosmo-ecologia ou ter novas áreas para a prática do seu sistema tradicional de
agricultura, fundamental para a manutenção das sementes deixadas pelas suas
divindades e o preparo dos seus alimentos tradicionais. O mesmo pode ser dito
para os objetos de artesanato e turismo dentro da área indígena, temas
preconizados pelas próprias políticas públicas, por conciliar economia (geração
de renda), ambiente (conservação) e cultura (preservação e valorização da
cultura indígena).
A autora finaliza a tese afirmando que a nova
relação entre o Estado e a sociedade brasileira e os indígenas, a partir da
constituição de 1988, tem exigido a readequação da prática indigenista. A
passagem de uma gestão tutelar para um modelo que prega autonomia dos indígenas
traz à discussão o próprio entendimento do que seja desenvolvimento, o papel do
Estado (tendo em vista contemplar a diversidade cultural e as formas de
organização dos coletivos indígenas) e o papel dos indígenas (na ocupação de
seu lugar como ser político e ético, o elo entre o interno e o externo).
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA:
SOARES, Mariana de Andrade. Caminhos
Para Viver O Mbya Reko: Estudo Antropológico Do Contato Interétnico E De
Políticas Públicas De Etnodesenvolvimento a Partir De Pesquisa Etnográfica
Junto a Coletivos Guarani No Rio Grande Do Sul. Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 2012.
[1]
“Possui
graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998),
mestrado (2001) e doutorado (2012) em Antropologia Social pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Desde 2002 é antropóloga da instituição oficial
de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) no Rio Grande do Sul, exercendo
a Coordenação Estadual de ATER nos coletivos Guarani, Kaingang e Charrua, bem
como, comunidades remanescentes de quilombos. Tem atuado principalmente nos
seguintes temas: Etnologia Indígena, Políticas Públicas e
Desenvolvimento”. Informações coletadas
do Lattes. Disponível em:
<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4775713T6>.
Acesso em 27jun2015.