Reflexão
sobre a tese de doutorado “Tata
endy rekoe – Fogo Sagrado: Encontros entre os Guarani, a ayahuasca e o Caminho
Vermelho”, de Isabel Santana de Rose.
Parece impossível evitar a
reflexão sobre as culturas indígenas e seu diálogo com a cultura do “homem
branco” e outras culturas indígenas. Se levarmos em conta que o conceito de
cultura é plural e mutável, então teremos de realizar o esforço da compreensão
do diálogo cultural entre indígenas de culturas diversas e não-indígenas.
A tese de Rose (2010)
compreende a apropriação pelos habitantes da aldeia Yynn Morothi Wherá, indígenas guarani mbyá residentes no município
de Biguaçu – SC, dos rituais sagrados da ayahuasca no período que compreende os
anos de 1999 e 2010.
Tratando-se o uso da
ayahuasca (plantas de propriedades enteógenas que propiciam o encontro do ser
humano com o divino) de uma tradição entre diversas etnias indígenas
amazônicas, soa importante frisar que o contato da aldeia Yynn Morothi Wherá se dá através do contato com um médico
não-indígena que, chamado para tratar de um paciente indígena da referia aldeia
― que neste momento se recusava aos tratamentos medicinais usuais ―, sugere a
utilização do chá amazônico como forma de tratamento. A partir deste primeiro
contato e com o posterior diálogo entre indígenas dos povos guarani mbyá de
Santa Catarina e as comunidades espirituais Fogo Sagrado de Itzachilatlan e
comunidade do Santo Daime Céu do Patriarca São José, de Florianópolis – SC.
Este contato com os grupos
que fazem uso da ayahuasca, indígenas e não-indígenas, proporciona um contato
cultural para além da espiritualidade: o intercâmbio cultural se demonstrará
benéfico e riquíssimo para todas as culturas em diálogo, uma vez que se colocam
em contato, além dos indígenas guaranis, também “indígenas kaxinawa da Amazônia
brasileira, taitas e xamãs Shuar do Equador e sangomas sul-africanos (ROSE,
p.15). Este diálogo é visível no Encontro de Medicinas, reunião intercultural
onde são realizados rituais de ayahuasca ― de acordo com cada uma das culturas
envolvidas e suas peculiaridades ―, e onde ocorrem trocas de informações sobre
uso de outras plantas e rituais espirituais e de cura.
Outros intercâmbios podem
ser reconhecidos após o contato dos guaranis com os daimistas. A temazcal, por
exemplo, uma sauna onde são dispostas pedras quentes e ervas aromáticas, tem
origem andina e hoje já existe uma temazcal na aldeia guarani mbyá. Da mesma
forma, a ordem do ritual do consumo de ayahuasca toma proporções diversas em
Biguaçu, pois ao contrário de acontecer em volta do fogo e ao ar livre, como em
outras culturas, ali seu consumo se dá dentro da opy, ou casa de rezas.
Este diálogo intercultural
pode ser percebido já nas origens do Santo Daime, religião sincrética que
envolve, em torno do consumo da ayahuasca, tanto a religiosidade de povos
indígenas amazônicos, como também do “catolicismo popular, integrando elementos
de diferentes tradições espirituais, tais como o espiritismo kardecista, cultos
afro-brasileiros, o esoterismo europeu, o vegetalismo amazônico”. (ROSE, p.
99).
A autora descreve muito bem
como o contato dos indígenas guarani de Biguaçu com as comunidades daimistas
influencia culturalmente a aldeia, uma vez que “os diálogos e negociações entre
estes diferentes grupos e atores vem dando lugar a uma intensa circulação de
pessoas, substâncias, imagens, idéias, rituais e estéticas”. (ROSE, p.12) Esta
aproximação e todas as trocas dela decorrentes não haveriam ou aconteceriam de
maneira muito mais lenta não fosse a apropriação que os guarani fazem da
ritualística da ayahuasca, indo além de meros consumidores da substância.
Neste sentido, vale
ressaltar que os diálogos interculturais proporcionados pelo consumo da
ayahuasca pelos indígenas guaranis mbyá da aldeia Yynn Morothi Wherá com outros povos e outras culturas permitiu,
para além da troca de conhecimentos, também a renovação cultural do próprio
povo de Biguaçu, pois a explicação que dão para a apropriação de ritualística
xamânica advém de um consumo ancestral por seus ancestrais.
Da mesma forma, a
apropriação dialógica faz com que os guaranis não somente tomem posse de
rituais, como também contribuam com seus conhecimentos ancestrais e culturais
para o feitio da ayahuasca e para os ritos que acontecem em torno do consumo do
chá, de tal modo que nos cantos rituais, já se encontram palavras no idioma
guarani, quéchua, de povos amazônicos, demonstrando que o diálogo existe para
além do mero contato, chegando até a linguagem e à ritualística.
Percebe-se, neste contexto,
que as culturas indígena e não-indígena não podem ser percebidas como estáticas
e que, embora o contato da aldeia Yynn
Morothi Wherá com a comunidade daimista de Santa Catarina tenha se dado
como que acidentalmente, ela criou um vínculo entre culturas e povos que para
além de não cessar, ainda proporciona um diálogo intercultural riquíssimo para
todas as comunidades envolvidas em torno do consumo da ayahuasca.
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA:
ROSE, Isabel S. Tata endy rekoe – Fogo
Sagrado: Encontros entre os Guarani, a Ayahuasca e o Caminho Vermelho. 2010.
435 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis. 2010.
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