segunda-feira, 29 de junho de 2015

Dialogicidade cultural indígena:

Reflexão sobre a tese de doutoradoTata endy rekoe – Fogo Sagrado: Encontros entre os Guarani, a ayahuasca e o Caminho Vermelho”, de Isabel Santana de Rose.

Parece impossível evitar a reflexão sobre as culturas indígenas e seu diálogo com a cultura do “homem branco” e outras culturas indígenas. Se levarmos em conta que o conceito de cultura é plural e mutável, então teremos de realizar o esforço da compreensão do diálogo cultural entre indígenas de culturas diversas e não-indígenas.
A tese de Rose (2010) compreende a apropriação pelos habitantes da aldeia Yynn Morothi Wherá, indígenas guarani mbyá residentes no município de Biguaçu – SC, dos rituais sagrados da ayahuasca no período que compreende os anos de 1999 e 2010.
Tratando-se o uso da ayahuasca (plantas de propriedades enteógenas que propiciam o encontro do ser humano com o divino) de uma tradição entre diversas etnias indígenas amazônicas, soa importante frisar que o contato da aldeia Yynn Morothi Wherá se dá através do contato com um médico não-indígena que, chamado para tratar de um paciente indígena da referia aldeia ― que neste momento se recusava aos tratamentos medicinais usuais ―, sugere a utilização do chá amazônico como forma de tratamento. A partir deste primeiro contato e com o posterior diálogo entre indígenas dos povos guarani mbyá de Santa Catarina e as comunidades espirituais Fogo Sagrado de Itzachilatlan e comunidade do Santo Daime Céu do Patriarca São José, de Florianópolis – SC.
Este contato com os grupos que fazem uso da ayahuasca, indígenas e não-indígenas, proporciona um contato cultural para além da espiritualidade: o intercâmbio cultural se demonstrará benéfico e riquíssimo para todas as culturas em diálogo, uma vez que se colocam em contato, além dos indígenas guaranis, também “indígenas kaxinawa da Amazônia brasileira, taitas e xamãs Shuar do Equador e sangomas sul-africanos (ROSE, p.15). Este diálogo é visível no Encontro de Medicinas, reunião intercultural onde são realizados rituais de ayahuasca ― de acordo com cada uma das culturas envolvidas e suas peculiaridades ―, e onde ocorrem trocas de informações sobre uso de outras plantas e rituais espirituais e de cura.
Outros intercâmbios podem ser reconhecidos após o contato dos guaranis com os daimistas. A temazcal, por exemplo, uma sauna onde são dispostas pedras quentes e ervas aromáticas, tem origem andina e hoje já existe uma temazcal na aldeia guarani mbyá. Da mesma forma, a ordem do ritual do consumo de ayahuasca toma proporções diversas em Biguaçu, pois ao contrário de acontecer em volta do fogo e ao ar livre, como em outras culturas, ali seu consumo se dá dentro da opy, ou casa de rezas.
Este diálogo intercultural pode ser percebido já nas origens do Santo Daime, religião sincrética que envolve, em torno do consumo da ayahuasca, tanto a religiosidade de povos indígenas amazônicos, como também do “catolicismo popular, integrando elementos de diferentes tradições espirituais, tais como o espiritismo kardecista, cultos afro-brasileiros, o esoterismo europeu, o vegetalismo amazônico”. (ROSE, p. 99).
A autora descreve muito bem como o contato dos indígenas guarani de Biguaçu com as comunidades daimistas influencia culturalmente a aldeia, uma vez que “os diálogos e negociações entre estes diferentes grupos e atores vem dando lugar a uma intensa circulação de pessoas, substâncias, imagens, idéias, rituais e estéticas”. (ROSE, p.12) Esta aproximação e todas as trocas dela decorrentes não haveriam ou aconteceriam de maneira muito mais lenta não fosse a apropriação que os guarani fazem da ritualística da ayahuasca, indo além de meros consumidores da substância.
Neste sentido, vale ressaltar que os diálogos interculturais proporcionados pelo consumo da ayahuasca pelos indígenas guaranis mbyá da aldeia Yynn Morothi Wherá com outros povos e outras culturas permitiu, para além da troca de conhecimentos, também a renovação cultural do próprio povo de Biguaçu, pois a explicação que dão para a apropriação de ritualística xamânica advém de um consumo ancestral por seus ancestrais.
Da mesma forma, a apropriação dialógica faz com que os guaranis não somente tomem posse de rituais, como também contribuam com seus conhecimentos ancestrais e culturais para o feitio da ayahuasca e para os ritos que acontecem em torno do consumo do chá, de tal modo que nos cantos rituais, já se encontram palavras no idioma guarani, quéchua, de povos amazônicos, demonstrando que o diálogo existe para além do mero contato, chegando até a linguagem e à ritualística.
Percebe-se, neste contexto, que as culturas indígena e não-indígena não podem ser percebidas como estáticas e que, embora o contato da aldeia Yynn Morothi Wherá com a comunidade daimista de Santa Catarina tenha se dado como que acidentalmente, ela criou um vínculo entre culturas e povos que para além de não cessar, ainda proporciona um diálogo intercultural riquíssimo para todas as comunidades envolvidas em torno do consumo da ayahuasca.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

ROSE, Isabel S. Tata endy rekoe – Fogo Sagrado: Encontros entre os Guarani, a Ayahuasca e o Caminho Vermelho. 2010. 435 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2010.

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